Quando eu era menina, por
uma questão de educação, não podíamos interferir na conversa dos adultos. Permanecíamos
em silêncio em companhia deles ou brincávamos com outras crianças. Eu, por ser
muito tímida, passava a maior parte do tempo junto com as mulheres ouvindo as
suas conversas.
Ouvi
muitas histórias e com elas fui entendendo o papel da mulher na sociedade
daquela época. Algumas dessas histórias revelavam o lado perverso do machismo. Isso acendeu em mim uma chama de indignação que,
quando pude dedicar um tempo para escrever, eu reuni essas histórias num único
romance. Assim, contando com a minha
memória, recordando as histórias de muitas mulheres, eu mergulhei profundamente
nesse universo da violência doméstica (física e psicológica) do início dos anos
de 1970 e escrevi o romance “Vinho”.
Essa
violência não partia apenas dos maridos, mas também dos pais e dos irmãos,
quando eles não permitiam que as moças realizassem os seus sonhos; quando arranjavam
casamentos porque interessava às famílias e as obrigavam a viver pelo resto da
vida com um homem o qual não tinham o menor afeto.
Conheci
histórias de mulheres que não podiam se arrumar como queriam. Levavam surras por
conta de um batom vermelho, de um esmalte nas unhas ou de uma saia um pouco
mais curta. E o pior de tudo, quando as
outras mulheres comentavam as “surras”, elas achavam que os homens haviam agido
de forma correta. Era preciso corrigir a moça antes que ela se perdesse! Eu
ouvia, mas não sabia o que significava “se perder”.
Algumas
se casavam sem saber o que aconteceria depois do casamento, assim eram traumatizadas,
humilhadas e ainda sentiam vergonha de si mesmas! Assustadas viviam subjugadas
aos seus maridos que mandavam em tudo. Elas não tinham dinheiro e eles as
diminuíam, dizendo que “tratavam” delas! Algumas não podiam nem fazer um corte
de cabelo como desejasse. Se fizessem sem autorização eles enfureciam!
Por
qualquer coisa elas apanhavam. Eu me recordo de mulheres escondendo os
hematomas causados pelos maridos violentos! Naquela época não tinha com quem
buscar ajuda, todos achavam que era direito dos maridos, baterem nas esposas
para corrigi-las.
Naquela
época não se falava em drogas, mas muitos homens bebiam demais. Paravam nos bares
a tarde, ficavam alterados e voltavam para casa xingando, rasgando, quebrando
tudo o que achavam pela frente e batendo nas mulheres e crianças. As mulheres
aprendiam a sobreviver com isso e permaneciam caladas, pois não podiam se
separar. Era uma vergonha ser uma mulher desquitada!
Se
acontecesse algum caso de adultério, apenas a mulher era considerada culpada. O
homem não, ele foi seduzido! Ela não
encontraria apoio em ninguém, nem na igreja e nem na própria família. Ela
viveria eternamente as dores da rejeição que faria com que ela própria se
convencesse que era pecadora. Chegava ao absurdo de preferir a morte, a viver
sendo desprezada. Eu tive um caso assim em minha família!
Algumas
mulheres viviam tristes e eram incompreendidas, e somente hoje eu sei que sofriam
de depressão. Na época algumas eram tidas como loucas! Outras criavam fantasias
para sobreviver àquilo que a vida lhes apresentava, era uma saída, um ponto de
fuga! O feminicídio existia tanto quanto hoje, mas eram tratados como crimes
comuns e na maioria das vezes o agressor ficava impune porque, nesses casos
diziam que ele agiu para “limpar” a própria honra.
Porém,
nesse universo também existiam muitas mulheres fortes e guerreiras que impunham
as suas vontades e, desde aquela época, lutaram pela justiça e por direitos
iguais na sociedade. Graças a elas, hoje temos leis que protegem as mulheres;
os casos de violência são divulgados e existe uma cobrança muito maior da
sociedade para que haja uma mudança no modo de agir dos homens.
Quem
ler o “Conto de Aia” de Margaret Atwood, saberá que jamais
devemos deixar apagar esta chama de indignação que, nós mulheres, temos dentro
de nós, para que nunca se perca nenhum direito, pelo contrário, que outros
sejam conquistados e que um dia os homens reconheçam o valor e convivam lado a
lado com as mulheres, dando-lhes o respeito que merecem.