quinta-feira, 7 de março de 2019

Uma Chama de Indignação




Quando eu era menina, por uma questão de educação, não podíamos interferir na conversa dos adultos. Permanecíamos em silêncio em companhia deles ou brincávamos com outras crianças. Eu, por ser muito tímida, passava a maior parte do tempo junto com as mulheres ouvindo as suas conversas.
Ouvi muitas histórias e com elas fui entendendo o papel da mulher na sociedade daquela época. Algumas dessas histórias revelavam o lado perverso do machismo.  Isso acendeu em mim uma chama de indignação que, quando pude dedicar um tempo para escrever, eu reuni essas histórias num único romance.  Assim, contando com a minha memória, recordando as histórias de muitas mulheres, eu mergulhei profundamente nesse universo da violência doméstica (física e psicológica) do início dos anos de 1970 e escrevi o romance “Vinho”.
Essa violência não partia apenas dos maridos, mas também dos pais e dos irmãos, quando eles não permitiam que as moças realizassem os seus sonhos; quando arranjavam casamentos porque interessava às famílias e as obrigavam a viver pelo resto da vida com um homem o qual não tinham o menor afeto.
Conheci histórias de mulheres que não podiam se arrumar como queriam. Levavam surras por conta de um batom vermelho, de um esmalte nas unhas ou de uma saia um pouco mais curta.  E o pior de tudo, quando as outras mulheres comentavam as “surras”, elas achavam que os homens haviam agido de forma correta. Era preciso corrigir a moça antes que ela se perdesse! Eu ouvia, mas não sabia o que significava “se perder”.
Algumas se casavam sem saber o que aconteceria depois do casamento, assim eram traumatizadas, humilhadas e ainda sentiam vergonha de si mesmas! Assustadas viviam subjugadas aos seus maridos que mandavam em tudo. Elas não tinham dinheiro e eles as diminuíam, dizendo que “tratavam” delas! Algumas não podiam nem fazer um corte de cabelo como desejasse. Se fizessem sem autorização eles enfureciam!
Por qualquer coisa elas apanhavam. Eu me recordo de mulheres escondendo os hematomas causados pelos maridos violentos! Naquela época não tinha com quem buscar ajuda, todos achavam que era direito dos maridos, baterem nas esposas para corrigi-las.
Naquela época não se falava em drogas, mas muitos homens bebiam demais. Paravam nos bares a tarde, ficavam alterados e voltavam para casa xingando, rasgando, quebrando tudo o que achavam pela frente e batendo nas mulheres e crianças. As mulheres aprendiam a sobreviver com isso e permaneciam caladas, pois não podiam se separar. Era uma vergonha ser uma mulher desquitada!
Se acontecesse algum caso de adultério, apenas a mulher era considerada culpada. O homem não, ele foi seduzido!  Ela não encontraria apoio em ninguém, nem na igreja e nem na própria família. Ela viveria eternamente as dores da rejeição que faria com que ela própria se convencesse que era pecadora. Chegava ao absurdo de preferir a morte, a viver sendo desprezada. Eu tive um caso assim em minha família!
Algumas mulheres viviam tristes e eram incompreendidas, e somente hoje eu sei que sofriam de depressão. Na época algumas eram tidas como loucas! Outras criavam fantasias para sobreviver àquilo que a vida lhes apresentava, era uma saída, um ponto de fuga! O feminicídio existia tanto quanto hoje, mas eram tratados como crimes comuns e na maioria das vezes o agressor ficava impune porque, nesses casos diziam que ele agiu para “limpar” a própria honra.  
Porém, nesse universo também existiam muitas mulheres fortes e guerreiras que impunham as suas vontades e, desde aquela época, lutaram pela justiça e por direitos iguais na sociedade. Graças a elas, hoje temos leis que protegem as mulheres; os casos de violência são divulgados e existe uma cobrança muito maior da sociedade para que haja uma mudança no modo de agir dos homens.
Quem ler o “Conto de Aia” de Margaret Atwood, saberá que jamais devemos deixar apagar esta chama de indignação que, nós mulheres, temos dentro de nós, para que nunca se perca nenhum direito, pelo contrário, que outros sejam conquistados e que um dia os homens reconheçam o valor e convivam lado a lado com as mulheres, dando-lhes o respeito que merecem.    

Nenhum comentário:

Postar um comentário